Sobre desinformação e o jeitinho brasileiro

13.1.16

Texto originalmente escrito em dezembro de 2015.


Muito me assusta a quantidade de coisas que eu vejo sendo dita todo dia pelas ruas, ou na minha própria casa. Não apenas por serem coisas que eu discordo, por que isso é até saudável, mas porque muitas vezes ouço coisas perigosas, incongruentes e inconsequentes sendo ditas sem a menor hesitação. O que me assusta é a constatação que alguém possa dizer tais coisas tranquilamente, sem aparentemente ter dedicado a ela qualquer tipo de reflexão.


Hoje é um dia triste para o Brasil por muitas coisas — e o bloqueio temporário do whatsapp me parece ser uma delas —, principalmente por que o povo, inclusive aquele com acesso à educação e a informação, está mostrando como nosso modo de pensar e falar anda comprometido. Muito reclamamos do erro ou acerto da decisão que alguém tomou, ou que nós mesmo tomamos. Mas pouca gente está preocupada em analisar como essas decisões estão sendo tomadas.


O que sabemos sobre o bloqueio até então? Sabemos que ele diz respeito a um processo que corre na justiça estadual, no interior de São Paulo, desde, no mínimo, julho, quando o facebook (companhia controladora do whatsapp) foi intimada a revelar informações dos usuários para cooperar com uma investigação policial. Sabemos que a intimação não foi cumprida, e a empresa foi intimada novamente, dessa vez com imposição de multa. Meses depois, tal intimação não foi cumprida, e a decisão da juíza foi mandar suspender o serviço daquela empresa com base no novo Marco Civil da Internet.


Vale esclarecer que não sabemos se o processo tem a ver com tráfico de drogas, com pedofilia, ou com as putarias que até os policias da investigação provavelmente recebem no celular. Se nós soubéssemos, o processo não correria em segredo de justiça. Não sabemos se o whatsapp deveria ter divulgado informação de cinco usuários, ou de toda a rede de usuários do brasil, ou do mundo. Na verdade, sabemos muito pouco além do nome da juíza que tomou a decisão, e isso é o principal objetivo de um processo que corre sobre segredo de justiça. 


E quem reclama da falta de informação em relação ao processo, está reclamando sobre a possibilidade de um processo correr em segredo de justiça. É importante saber as consequências daquilo que você está pedindo para acontecer. Eu realmente não acho que seja do interesse de ninguém acabar com a possibilidade de um processo correr em segredo.


Também vale pensar, como vejo muita gente falando, que a interrupção do serviço do whatsapp não tem como ser comparada com um serviço essencial (como luz, água ou gás). A essencialidade desses serviços é muito superior à de um aplicativo de mensagens instantâneas. Não vou nem parar para explicar porquê.


Porém, mesmo que o quesito da essencialidade fosse vencido — o que me parece praticamente impossível — a comparação ainda não cabe. Percebam que o serviço suspenso é o de um aplicativo específico, não o de toda a internet. O que foi bloqueado foi o serviço final, não o serviço meio, pelo qual o final é prestado. Nesse cenário comparativo, não teriam bloqueado a light — ou a NET, em uma comparação um pouco menos desigual em essencialidade. Bloqueariam a luz de uma empresa específica, ou tirariam do ar um canal específico. E por 48 horas, a princípio.


Parece absurdo, mas é muito menos absurdo que uma enorme quantidade de coisas que vivemos no dia-a-dia. Afinal, o que acontece se você atrasa a sua conta de luz, ou se uma empresa que presta serviço para você todo dia não paga a dela? A light corta o serviço, não é? E por decisão da própria light, sem precisar ir ao judiciário ou nada similar. Uma sanção muito mais grave, de um serviço muito mais essencial, por um motivo muito menos gritante do que seis meses de descumprimento de um comando direto do Poder Judiciário.


E eu nem estou entrando aqui no mérito do livre mercado e tantos outros concorrentes que existem por aí para não deixar a população na mão.


Em outra fronte, algumas pessoas argumentam que a base jurídica do marco civil da internet não sustenta a decisão. Isso sim, me parece um motivo justo para questionar. Afinal, me parece que foi uma interpretação mais literal de um único dispositivo que possibilitou tal interrupção. Nesse caso, se assim foi, me parece descabida a decisão.


Mas, como eu disse, o que mais me incomoda não é a decisão em si. É que horas se passaram, e eu ainda não vi ninguém realmente preocupado em se informar. Nem mesmo aqueles responsáveis por informar os outros. Não sobre o processo, não sobre a decisão — ambos, como eu disse, correm em segredo inviolável —, mas sobre como tudo está acontecendo. Entrei no facebook esperando que as horas do início do dia tivessem servido para a galera falar menos besteira, mas desliguei em seguida porque vi que estava tudo na mesma. Liguei a TV esperando mais consciencia, e o pessoal está discutindo a ética do jeitinho brasileiro e se recusando a divulgar o VPN. 


Socorro!


Não é questão de opinião. É questão de falta de informação. E, pior, falta de informação propagada de maneira descuidada e despreocupada. Não vi ninguém falando de como pode ser possível uma empresa bloquear apenas um aplicativo e que consequências isso pode gerar para o fornecimento da internet como um todo, que esteve bem instável em muitos lugares, durante a madrugada. Não tem gente querendo saber qual é a outra interpretação do marco civil, ou se existe um recurso que possa reverter o bloqueio antes das 48 horas.


Uma decisão judicial envolvendo servidores de internet, e não se consultam juristas nem programadores ou técnicos especialistas de rede. Decide-se discutir ética, sem nem saber dizer “ética do que”.


Para quem não sabe, VPN é um serviço antigo de roteamento de rede. Não sou técnico, mas, até onde sei, ele criptografa sua conexão e passa ela por um outro servidor, em outro país, além daquele da sua operadora. Com isso, você consegue evitar o bloqueio, que é feito apenas na rede brasileira. O risco é que suas informações passam por um novo caminho, e por um novo servidor, sem a proteção dada pela sua operadora. Nesse novo caminho, você conta apenas com a proteção do servidor do VPN. E o próprio dono do servidor vai ter acesso àquelas informações


Existe mais risco, mas também existem servidores de VPN potentes e mais protegidos do que os de algumas operadoras por aí. E tudo isso é tão comum e corriqueiro que a configuração dos telefones já vem naturalmente com adaptadores de VPN (é só você catar nas suas configurações que você provavelmente vai achar). O próprio facebook tem um servidor de VPN para o celular, o Onavo. Teoricamente, esse servidor é do mesmo grupo do whatsapp, que já recebia suas informações antes de qualquer jeito.


Importante é saber que, apesar de servir como um “jeitinho”, o VPN é um serviço legal, que existe há anos e vai continuar existindo daqui a 48 horas, quando não tiver mais bloqueio. Não é um jeito de burlar a ética corrente, nem de corromper o povo. Muito menos de desobedecer a uma ordem judicial.


Que fique bem claro: a intimação foi para o whatsapp. Ele sim desobedeceu alguma coisa. A intimação para suspender o whatsapp (já que ele não obedecia) foi feita às operadoras de internet, como Claro, Vivo ou OI. E elas bloquearam o serviço, certinho, obedecendo a justiça. A justiça não te proibiu de baixar o VPN e usar o whatsapp. Se você conseguir encontrar meios legais de acessar o serviço, você não está desobedecendo nada. E, na minha concepção, nem está sendo antiético.


Proibir o fornecimento é diferente de proibir o uso. Falamos disso toda vez em que se discute a criminalização da maconha.


Então, por favor, sem ficar nessa de #desobedienciacivil. Eu sei que tem muita gente que gosta de xingar muito no twitter e ficar puta revolts, mas você não está desobedecendo nada. Na verdade, essa confusão toda foi gerada justamente porque o whatsapp achou que podia desobedecer às ordens do Estado Brasileiro e que ia ficar de boa.


No fim, essas coisas só me servem de prova de como as pessoas se assustam quando ficam sem informação, porque elas já não conseguem mais viver sem emitir um julgamento, instantâneo e definitivo, sobre o que está acontecendo. E me assusta ver que os próprios veículos de comunicação não se preocupam em fornecer informações vitais e seguras, e, ao contrário, instigam a desordem e a informação imprecisa, que gera o preconceito e o medo — basta ver como, da noite para o dia, o VPN passou a ser visto como pirataria e desobediência civil, e como tem gente amedrontada pelo serviço, que pode funcionar melhor que muitos outros aplicativos, mais populares na internet.


E, ainda mais, é incrível como estamos prontos, ao menor sinal de problema, a crucificar o judiciário, e o próprio povo. Critica-se tudo, desde a lei, passando pelo tribunal — sobrou até para a presidente, pelo que tenho ouvido — até chegar ao modo de ser do brasileiro. O menos criticado nessa história toda até agora foi o whatsapp, que desobedeceu a uma decisão judicial por seis meses.


E eu não estou nem dizendo que ele deveria ter obedecido. Só estou dizendo que todo mundo deveria ter muito mais paciência para julgar qualquer tipo de coisa, e que, na falta dela, não deveríamos nos virar uns contra os outros. O mundo acha mais importante ter algo a dizer, seja a besteira que for, mesmo que não tenha base para dizê-lo, e o brasileiro em especial adora queimar o próprio filme, e olhar para a grama do vizinho.


Menos barulho e mais reflexão, por favor. Não é porque você foi a uma boa escola ou a uma boa faculdade, nem é porque você é professor, que a primeira coisa que lhe vem à cabeça é a certa. A ideia de educação não é essa. Educação é saber que nem tudo é como parece, que devemos ter muito mais cuidado ao emitir um julgamento. E é justamente dessa educação que esse país mais precisa.

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